03/02/2011

O texto que eu gostaria de ter escrito

"Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos seus próprios filhos. É que as crianças crescem independentes de nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados. Crescem sem pedir licença à vida.

Crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada arrogância. Mas não crescem todos os dias de igual maneira. Crescem de repente.

Um dia sentam-se perto de ti no terraço e dizem uma frase com tal maturidade que tu sentes que não podes mais trocar as fraldas daquela criatura. Por onde é que andou a crescer aquela danadinha que tu não percebeste? Onde está a pá de brincar na areia, as festas de aniversário com palhaços e o primeiro uniforme da Creche?
A criança está a crescer num ritual de obediência orgânica e desobediência civil. 
E tu estás agora ali, na porta da discoteca, à espera que ela não apenas cresça, mas apareça! 
Ali estão muitos pais ao volante, esperando que eles saiam esfuziantes sobre patins e cabelos longos, soltos. Entre hambúrgueres e refrigerantes nas esquinas, lá estão os nossos filhos com o uniforme da sua geração: incómodas mochilas da moda nos ombros. Ali estamos, com os cabelos esbranquiçados. Esses são os filhos que conseguimos gerar e amar, apesar dos golpes dos ventos, das colheitas, das notícias, e da ditadura das horas. 
E eles crescem meio amestrados, observando e aprendendo com os nossos acertos e erros. Principalmente com os erros que esperamos que não repitam.

Há um período em que os pais vão ficando um pouco órfãos dos próprios filhos. Não mais os vamos buscar às portas das discotecas e das festas.
Passou o tempo do ballet, do inglês, da natação e do judo.
Saíram do banco de trás e passaram para o volante das suas próprias vidas.
Deveríamos ter ido mais à cama deles ao anoitecer para ouvir a sua alma respirando conversas e confidências entre os lençóis da infância, e os adolescentes cobertores daquele quarto cheio de adesivos, posters, agendas coloridas e discos ensurdecedores. Não os levamos suficientemente aos Playcenter's, ao Shopping, não lhes demos suficientes hambúrgueres e cocas, não lhes compramos todos os gelados e roupas que gostaríamos de ter comprado. Eles cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afecto.

No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia entre embrulhos, bolachas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscina e amiguinhos.

Sim, havia as brigas dentro do carro, a disputa pela janela, os pedidos de chicletes e cantorias sem fim. Depois chegou o tempo em que viajar com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento, pois era impossível deixar a turma e os primeiros namorados.

Os pais ficaram exilados dos filhos. Tinham a solidão que sempre desejaram, mas, de repente, morriam de saudades daquelas "pestes".
Chega o momento em que só nos resta ficar de longe torcendo e orando muito (nessa hora, se tínhamos desaprendido, reaprendemos a orar) para que eles acertem nas escolhas em busca de felicidade.
E que a conquistem do modo mais completo possível.

O jeito é esperar: qualquer hora podem dar-nos netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer connosco. Por isso os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável carinho. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afecto. Por isso é necessário fazer alguma coisa a mais, antes que eles cresçam.

Aprendemos a ser filhos depois que somos pais. Só aprendemos a ser pais depois que somos avós..."


Autor: Affonso Romano de Sant'Anna